sexta-feira, 6 de maio de 2011

A MAGIA DO ENCONTRO I: OS PIONEIROS

É da tradição da música brasileira o encontro entre cantores. Já na década de 1930 alguns encontros entre cantores fizeram grande sucesso. Naquela época as gravações eram feitas em discos de goma-laca, substância produzida por um inseto conhecido como kerria lacca, encontrado nas florestas da Índia e da Tailândia. Pelo tipo de textura desse material e pelas dimensões dos discos, só cabia uma música em cada lado (cerca de 3 minutos) e por isso, caso o encontro de dois cantores agradasse o público – bem restrito, nessa época, diga-se de passagem –, a experiência era repetida em novas gravações. Lembro aqui as duplas Francisco Alves e Mário Reis e Jonjoca e Castro Barbosa. Essa dupla de cantores registrou, em junho de 1931, um disco com os sambas Sinto falta de você e A cana está dura, ambos compostos pelo próprio Jonjoca. Na verdade, parece que o disco foi uma resposta da gravadora, a Victor, à Odeon, gravadora que desde setembro do ano anterior fazia enorme sucesso com gravações da dupla formada por Francisco Alves e Mário Reis. Até novembro de 1933 foram lançados 11 discos (22 músicas) de Jonjoca e Catro Barbosa.
A dupla “concorrente”, Mário Reis e Francisco Alves, era mais interessante por duas características. A primeira era a diferença de timbre e de colocação da voz dos dois cantores. Enquanto Francisco Alves era conhecido por seu vozeirão, que mais lembrava um cantor de ópera, Mário Reis tinha uma voz suave e de pouco fôlego, tendo sido considerado por muitos estudiosos como precursor e inspirador do jeito de cantar de João Gilberto e, portanto, como uma espécie de “avô” da bossa nova. A segunda é que os dois cantores já eram bastante famosos – considerando-se os padrões da época – quando gravaram juntos uma série de discos entre 1930 e 1932.
Francisco Alves é considerado até hoje pelos especialistas em música brasileira como um dos maiores fenômenos da história da música popular brasileira, tendo sido uma peça-chave no mercado fonográfico nacional. Ele soube aproveitar como nenhum outro artista uma época em que as técnicas de gravação começavam a se aprimorar no Brasil, levando à popularização do disco, do rádio e do samba como estilo musical. Pra se ter uma ideia da importância de sua carreira musical, estima-se que entre a década de 1930 e 1953, quando morreu em um acidade de carro, chegou a vender 5 milhões de discos. Por causa de sua voz possante, ele ficou conhecido como o “Rei da Voz”. Seu prestígio era tão grande que ele gravava ao mesmo tempo para a gravadora Odeon e para a Parlophon, usando o pseudônimo Chico Viola. Para quem não está ligando o nome à pessoa, foi Francisco Alves quem gravou, em 1939, a famosa Aquarela do Brasil, de Ary Barroso, considerada como uma espécie de hino nacional não oficial do Brasil, conhecida no mundo todo.
Mário Reis, por sua vez, ficou conhecido por criar um estilo de cantar diferente do que havia no Brasil até então. Ao contrário dos vozeirões do rádio, cantava num tom quase coloquial, com outro timbre e uma divisão rítmica mais ágil, dando uma interpretação diferente às canções. Seus primeiros sucessos foram as músicas Jura e Gosto que me enrosco, de Sinhô. Foi também o primeiro a gravar uma música de Ary Barroso, em 1929. No ano seguinte começou a gravar uma série de discos em dupla com Francisco Alves, fórmula que mostrou-se extremamente bem-sucedida que foi imitada não só por Jonjoca e Castro Barbosa, mas também por vários outros cantores. Na década de 30 tornou-se um dos maiores intérpretes de Noel Rosa, que também foi seu parceiro. Entre essas gravações está a de Filosofia, de Noel e André Filho (o autor de Cidade maravilhosa), regravada na década de 1970 por Chico Buarque.
Os casos das duplas Jonjoca e Castro Barbosa e Francisco Alves e Mário Reis não podem ser vistos como encontros esporádicos, em que um dos cantores convidou o outro para participar de seu disco, mas uma série de gravações provavelmente estrategicamente planejadas pelas direções das gravadoras – mesmo levando-se em conta que a indústria musical estava só começando no Brasil. Por outro lado eles não chegaram a se configurar como duplas de cantores, como seriam, por exemplo, Antônio Carlos & Jocafi, Toquinho & Vinícius ou Tom & Dito, na década de 1970, Kleiton & Kledir, nos anos 90 ou, mais recentemente, os cantores “sertenejos” como Chitãozinho & Xororó, Bruno & Morrene ou Vítor & Léo, que sempre (ou na imensa maioria das vezes) gravam e se apresentam juntos. Além disso, eles não foram os únicos cantores dos primórdios da indústria fonográfica a gravarem juntos. Podemos lembrar, por exemplo, ainda na década de 1930, Dorival Caymmi e Carmen Miranda cantando O que é que a baiana tem, de 1939; Francisco Alves e Ismael Silva cantando Se você jurar, deles dois e Nilton Bastos, em 1931; Carmen Miranda e Luiz Barbosa cantando No Tabuleiro da Baiana, de Ary Barroso, em 1936; a divertidíssima Boneca de pixe, de Ary Barroso e Luiz Iglesias, cantada por  Almirante e Carmen Miranda, em 1938. Isso só pra lembrar algumas das canções mais famosas daquela época já tão distante de nós, mas tão presente em dezenas de regravações de outros artistas.
Como podemos ver, compartilhar o microfone (e também os palcos) é uma tradição bastante antiga da MPB, que continuou pelos anos afora, dando a quem gosta de música o prazer de encontros memoráveis – alguns em apenas uma canção, outros registrados em um show e/ou disco inteiro, como, por exemplo, a dupla Miltinho e Dóris Monteiro, em dois discos memoráveis de 1970 e 1971, Dóris, Miltinho e Charme volumes 1 e 2; ou Elis Regina e Jair Rodrigues, entre 1965 e 1967, com a série de discos Dois na bossa; ou o fantástico show de Chico Buarque e Caetano Veloso, de 1972, no Teatro Castro Alves, em Salvador, Bahia, registrado no disco Caetano e Chico Juntos e Ao Vivo; ou Chico e Maria Bethânia, em 1975, no disco Ao Vivo, registrado na temporada de shows no Canecão, no Rio de Janeiro, em 1975. Por razões técnicas, a maioria dos grandes do passado – os aqui mencionados e os que ainda não apareceram no meu texto – não têm como freqüentar as “ondas” da Escala Virtual. Mas fique de olho (ou melhor, de ouvido) aberto, porque muitos deles têm visitado a programação da rádio. Volto a falar disso daqui a pouco.

2 comentários:

  1. Grande Moby.
    Vale lembrar que os discos de goma-laca rodavam com rotação 78rpm. Deveriam pesar quase uma tonelada. KKKKKKK
    Adorei relembrar alguns grandes encontros da MPB.
    Aguardarei ansiosamente a próxima postagem.
    Grande abraço.
    RicO...

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  2. Valeu, Rico, obrigado.

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