quarta-feira, 8 de junho de 2011

A MAGIA DO ENCONTRO III: CHICO BUARQUE

Pra quem foi criado ao som da MPB como eu, poucas pessoas chegaram tão perto da unanimidade como o compositor e cantor Chico Buarque. Numa época em que, no Brasil, a música foi uma das formas mais criativas (e também mais eficazes) de luta contra a ditadura militar, a quase unanimidade em torno da figura do Chico tinha também um sabor de resistência à opressão.

Mas Chico Buarque não foi apenas o cantor da indignação de uma parcela significativa dos brasileiros contra o autoritarismo dos militares. Ele era também um intérprete sensível dos sentimentos humanos mais nobres, sem nunca descambar para a pieguice, para a breguice ou, como dizíamos na época, para a cafonice. Ele encantava a todos nós, homens e mulheres, embora fosse evidente o derretimento maior e mais desavergonhadamente assumido da mulherada. Por causa disso havia uma espécie de consenso conformista entre nós, os homens, de que “todo homem brasileiro é um corno do Chico Buarque”, tal era o derretimento de nossas namoradas, noivas, esposas, amantes etc. pelos olhos cor de ardósia, pela voz sensual (ainda que com pouca extensão e até meio desafinada), pelas melodias encantadoras e letras ao mesmo tempo sensíveis e inteligentes desse terrível sedutor da MPB.

Mas aí o tempo passou, a MPB foi perdendo espaço para outros ritmos e interesses, como o axé, o pagode, o sertanejo, o funk e tantas outras novidades mais ou menos musicais que foram aos poucos ganhando espaço na mídia a partir, principalmente, do final da década de 1990, depois da saudável explosão do rock nacional, nos anos 80, celebrando o fim da ditadura e tentando apontar algum rumo para o Brasil da “nova” república. No meio disso tudo, junto com outros grandes da MPB, como Caetano Veloso, Gilberto Gil, Djavan, Alceu Valença, a voz de Chico Buarque foi ficando perdida no tempo, saindo de moda e da mídia para apenas ocupar o lugar que lhe cabe na história, certo?

Errado! Chico Buarque, com seus sessenta e poucos anos, continua cantando e encantando, inclusive muita gente que, quando ele fazia sucesso na mídia, ouvia a Xuxa, a Turma do Balão Mágico, o Trem da Alegria ou ainda nem era plano nas cabeças e corações de futuros pais e mães. Veja, por exemplo, o que diz a cantora Fernanda Porto, uma das mais conhecidas da nova geração de cantores e cantoras do que às vezes vem sendo chamado de “Nova MPB”, na edição da Revista MTV de janeiro de 2005: “Não tenho essa coisa de ficar dizendo: ‘Ai, olha só que conquista’... Mas é claro que depois que eu fui ouvir falei: ‘Caramba, é mesmo, Chico Buarque fravou em drum’n’bass’. Até pensei: ‘Vou ligar pros meus amigos!’ (risos)”. Pra quem não sabe, drum’n’bass é uma tendência da música popular contemporânea, bastante dançante e por isso muito bem aceita no ambiente das discotecas, que costuma misturar voz, violão ou guitarra, baixo e samplers eletrônicos para criar ou reciclar canções. No Brasil, Fernanda Porto é talvez a mais famosa representante dessa tendência, misturando o bit acelerado da discoteca com MPB. O resultado é, no mínimo interessante. Mas o mais interessante é ouvi-la cantando Roda viva, do Chico, com a levada drum’n’bass, acompanhada do próprio, num encontro de gerações e tendências cujo resultado é um diálogo bastante interessante. A música está no CD Giramundo, de Fernanda, gravado em 2004.

Mas Fernanda Porto não foi a única a ter a companhia de Chico Buarque. Nos últimos anos, a presença de Chico Buarque em discos de cantores da nova geração da música brasileira tem sido uma constante. Ele está, por exemplo, no DVD Pra Se Ter Alegria, da cantora Roberta Sá, de 2009, que foi gravado ao vivo. Das quatro faixas bônus gravadas em estúdio, a canção Mambembe, do começo da carreira de Chico, que ele e Roberta Sá cantam acompanhados pelo violão de Marcello Gonçalves, do excelente Trio Madeira Brasil, está imperdível. A própria Roberta conta estava dentro de um restaurante quando viu Chico passando na rua e saiu em desabalada carreira correndo atrás dele para convidá-lo para a gravação. Coisa de tiete, que deu um excelente resultado.

Outro artista que não perdeu a oportunidade de reverenciar Chico Buarque foi seu xará Chico César, que o convidou para gravar com ele, em 2002, a provocativa canção Antinome, no CD Respeitem Meus Cabelos, Brancos. Vale a pena conferir letra, música e interpretação desse encontro, verdadeiro convite à reflexão: “Chamo-te pelo antinome, pai/ Quando o invisívelSome e se esvai/ Em vinho que não bebo/ Em pão que não comerei jamais”. Imagino que o César tenha se inspirado no Buarque na hora de compor e por isso decidiu convidá-lo para esse encontro musical.

Outro convite que produziu um resultado ao mesmo tempo curioso e saboroso foi o da cantora Marina de La Riva. Chico participou de seu CD de estreia, de 2007, dividindo com ela a canção Ojos malignos, um antigo bolero do cubano Juan Pichardo que no álbum foi transformado em samba. Marina é filha de pais cubanos. Seu pai era o herdeiro de um canavial em Cuba quando aconteceu a revolução liderada por Fidel Castro e Che Guevara, em 1959. Com medo do futuro, sua família resolveu se mudar para os EUA, onde continuou envolvida com a plantação de cana-de-açúcar. Depois de algum tempo e alguns insucessos econômicos, decidiram se mudar mais uma vez e vieram parar na região canavieira de Campos dos Goytacazes, onde Marina nasceu, cresceu e aprendeu a cantar música brasileira, deixando escondida em algum canto da memória e do coração a forte tradição cultural e musical cubana. Só depois de adulta é que ela teve coragem (ou discernimento) para resgatar seu lado cubano. Mas, como a música brasileira já estava mais do que enraizada, no disco ela acabou realizando uma ousada e interessante mistura, colocando ritmo de samba onde antes havia um bolero, introduzindo canto e ritmo cubano onde antes havia música brasileira. E lá no meio dessa mistura, parece que com muito gosto, estava Chico Buarque, convidado de honra.

Chico ainda aparece numa emocionante homenagem do sambista Diogo Nogueira, filho do não menos importante João Nogueira, em seu DVD de 2010 Sou Eu Ao Vivo. No show Chico divide com Nogueira a canção Homenagem ao malandro. Logo em seguida, Chico e Diogo Nogueira, acompanhados também de Ivan Lins e do magnífico bandolinista Hamilton de Holanda (que não é parente do Chico mas que todo mundo precisa conhecer), cantam a canção Sou eu, composição de Chico e Ivan feita para Diogo. A platéia, composta de gente, na média, bem mais jovem do que Chico e Ivan e que tem como hábito o consumo de sambas mais populares, assim mesmo vai ao delírio. Há algo de mágico em Chico Buarque, não?

Chico também está no CD de estreia da cantora paulista Rita Gullo. Detalhe interessante é que Rita Gullo é filha do grande escritor Ignacio de Loyola Brandão, autor de muito sucesso nos anos duros da ditadura militar, quando teve um de seus livros, Zero, proibido pela censura em 1975 e só liberado em 1979. Foi Brandão quem fez a aproximação entre a filha e Chico Buarque. Formada em História e em Artes Cênicas, parece que o repertório de seu primeiro álbum tem um toque dessas duas escolhas profissionais. Nele Chico divide com ela a canção A mulher de cada porto, dele e de Edu Lobo, que Chico já havia dividido com Gal Costa em 1980. O peso dessa responsabilidade parece não ter incomodado Rita, que tem uma belíssima voz e que escolheu um repertório de primeira qualidade, que vale a pena conferir.

É preciso falar também da participação de Chico Buarque no segundo CD da cantora curitibana Thaís Gulin, ôÔÔôôÔôÔ (o título é este mesmo, rs), publicado este ano, com a canção Se eu soubesse, do próprio Chico. Thaís vem sendo apontada como a nova namorada de Chico Buarque, o que tem provocado a inveja e a raiva de algumas fãs – e não só, necessariamente, as menos jovens, as que já passaram, digamos, da casa dos cinqüenta... Ela evita falar no assunto e sobre Chico ela apenas diz, em entrevista para a revista Quem, que “[...] tinha gravado duas músicas dele no meu primeiro álbum e ele me mandou um e-mail elogiando. Continuamos a nos falar e, um dia, ele me enviou a música”, sem dar pistas sobre o possível romance.

E já que o assunto são os, digamos, laços de família, Chico participou também, no ano passado, do CD Diminuto do genro Carlinhos Brown, não como cantor, mas declamando um poema do próprio Brown no meio da canção Mãos denhas. É provável que o parentesco entre os dois tenha facilitado a participação de Chico no disco de Brown – além do mais, lendo um poema do genro. Mas é inegável que, sogro ou não, Brown só o convidou porque tal participação agrega prestígio ao álbum – aliás, extremamente delicado e muito diferente do que Carlinhos Brown tem produzido ao longo de sua carreira já relativamente longa. Afinal, mais do que sogro, o convidado é Chico Buarque, que, além de cantor e compositor, é também escritor, e dos bons.

Finalmente, lembro o excelente CD de estreia da cantora mineira Paula Santoro, de 2005, em que ela canta com Chico a difícil Sem fantasia, feita para a peça teatral Roda Viva e gravada originalmente em 1968, em dueto com a irmã Cristina, depois regravada com Maria Bethânia, ao vivo, em 1975. Sua interpretação não fica devendo nada a Cristina, então uma quase adolescente, nem a Bethânia, já consagrada nos anos 70.

O que marca mesmo é a reverência ao grande Chico Buarque, que vem funcionando como uma espécie de pé de coelho de artistas mais jovens, ao mesmo tempo que atesta o vigor e a beleza de sua música, que atravessa décadas agradando gregos e troianos – e, claro, as gregas e troianas – tanto ou mais do que seus famosos olhos azuis. Na verdade, acho que Francisco Buarque de Hollanda deveria ser tombado pelo IPHAN e pela UNESCO como Patrimônio Cultural da Humanidade. E pergunto: onde é que você pode se encontrar e se encantar com as canções de Chico Buarque, na sua própria voz, na voz de outros artistas, em interpretações solo ou em dueto com outros cantores? Claro, só na Escala Virtual.