sábado, 2 de julho de 2011

MÚSICA INSTRUMENTAL I: UM POUCO SOBRE JAZZ

Não sei o que as pessoas pensam quando pensam na expressão “música experimental”. A enciclopédia virtual Wikipédia diz que música instrumental é “toda música produzida exclusivamente por instrumentos musicais”, mas ressalva que, “ao contrário do que parece, a música instrumental não é necessariamente desprovida da voz e do canto”, já que em alguns casos, como na canção Taiane, do brasileiro Hermeto Pascoal (do álbum Mundo Verde Esperança, de 2003) ou na bem mais conhecida The great gig in the sky, do antológico e inesquecível álbum Dark Side of The Moon (1973), da banda inglesa Pink Floyd, a voz é usada como instrumento musical[1].
A Wikipédia lembra, ainda, que até o início do século XVI os instrumentos musicais eram usados apenas para acompanhar os cantos ou marcar o compasso das músicas, mas a partir de então as composições instrumentais foram ficando casa vez mais freqüentes até que, durante o período conhecido como barroco (séculos XVII e XVIII), a música instrumental passou a ter importância igual à vocal. Mas foi durante o período clássico (aproximadamente entre 1750 e 1810), que a música instrumental passou a ter importância maior do que a vocal, devido ao aperfeiçoamento dos instrumentos e ao surgimento das orquestras.
A partir das primeiras décadas do século XX a música instrumental passa a conviver com o grande público, primeiro nos EUA e depois no resto do mundo, através do jazz. Nascido a partir de outros estilos musicais norte-americanos mais antigos como o blues, as work songs (canções de trabalho) dos trabalhadores negros, do negro spiritual protestante e do ragtime, o jazz foi (e ainda é) o principal responsável por enraizar na cultura popular a música instrumental[2].
A palavra jazz começou a ser usada nos EUA no final da década de 1910 e início dos anos 20, para descrever um tipo de música que surgia nessa época em New Orleans, Chicago e New York. Seus intérpretes mais famosos são considerados hoje em dia como os “pais” do jazz. Entre eles estão a Original Dixieland Jass Band, do cornetista Nick LaRocca, o pianista Jelly Roll Morton (que se autodenominava o "criador do jazz"), o cornetista King Oliver, com sua Original Creole Jazz Band, e o clarinetista e sax-sopranista Sidney Bechet. Em seguida, surgem em Chicago os trompetistas Louis Armstrong e Bix Beiderbecke e em New York o pianista Fats Waller e o pioneiro bandleader Fletcher Henderson.
Em 1930 o jazz já possui um repertório considerável e várias grandes orquestras, como as de Duke EllingtonCount Basie, Cab Calloway e Earl Hines. É nessa década que aparece o primeiro estilo realmente popular do jazz, conhecido como swing. Por ser dançante e de fácil assimilação, caiu rapidamente no gosto popular, numa época em que as tensões mundiais que levariam à II Guerra Mundial pediam um estilo leve, dançante, de fácil aceitação, para divertir e distrair. O melhor exemplo dessa época talvez seja Glenn Miller, que tornou mundialmente famosa a canção Moonlight serenade.
Coincidentemente (ou não?) com o fim da guerra, em 1945, nasce uma maneira de tocar muito mais radical e que fazia muito menos concessões ao gosto popular, conhecido como bebop. É dessa época, talvez, o número mais expressivo de instrumentistas a registrarem seus nomes na história do jazz. Além dos “pais” do bebop Charlie Parker – também conhecido como The Yardbird (prisioneiro) e logo “promovido” a Bird (pássaro) simplesmente – e Dizzie Gillespie, é também a época do pianista Thelonious Monk, de Miles Davis e John Coltrane, dos bateristas Kenny Clarke e Max Roach, dos guitarrista Charlie Christian e Joe Pass; do vibrafonista Milt Jackson, do pianista Bud Powell e do trombonista J. J. Johnson.
Em resposta à agressividade do bebop aparece, nos anos 50, o cool jazz, estilo mais leve e mais romântico, numa abordagem mais simples do ritmo, embora ainda preservando a harmonia do bebop, com uma proposta intelectualizada que está para o jazz assim como a música de câmara está para a música erudita[3]. O cool jazz e o bebop dominam a cena da música instrumental durante praticamente toda a década de 1950, quando surge um novo estilo jazzístico conhecido como free jazz[4].
No final dos anos 60 acontece uma fusão inevitável entre dois estilos musicais marcados pela ousadia e pelo experimentalismo, o jazz com o rock, resultando, pelo menos no início, em obras musicais bastante inovadoras. Conhecido como jazz fusion ou simplesmente fusion, essa maneira de tocar gerou grandes nomes como os baixistas Stanley Clarke e Marcus Miller, o tecladista Chick Corea, as bandas Return to Forever, Mahavishnu Orchestra, Weather Report e Passport, os guitarristas Al Di Meola, John McLaughlin, Carlos Santana e Pat Matheny e o violinista Jean-Luc Ponty, só para ficar com alguns dos mais famosos.
Atualmente, para as pessoas que gostam de musical instrumental em geral e particularmente de jazz, podemos dizer que há espaço para todos os gêneros de jazz, desde o tradicional dixieland até o experimentalismo do free jazz, desde os velhos e sempre amados standards até as mais ambiciosas composições originais para grandes formações. Caberia perguntar, então, qual seria o estilo de jazz próprio dos dias de hoje. A resposta talvez esteja no jazz feito com instrumentos eletrônicos – samplers e seqüenciadores – num cruzamento com o tecno e o drum’n’bass – o chamado acid jazz. Ou não, como diria Caetano Veloso, que diz não ser fã da música instrumental.
Mas isso já é papo pra outra conversa. O importante é registrar que se você é fã da música instrumental em geral, do jazz em particular, em todas as suas modalidades, a Escala Virtual tem o tema certo pra agradar o seu sofisticado gosto. Mas se você é apenas um/a aprendiz, a fim de conhecer e saborear a música instrumental e encontrar o estilo que melhor se adéqua ao seu paladar apurado, o melhor lugar também é aqui na Escala Virtual. Aqui nós continuamos interessados em transmitir, ouvir, pensar e discutir “sobre essa música que não tem rótulo, à qual é pouco chamar de ‘música de qualidade’ porque esse conceito explica muito pouco, mas que quando toca nos toca e permanece tocando pelos anos afora, sem ser engolida pela máquina de fazer dinheiro que transforma tudo em produto de fábrica”, conforme eu dizia na minha primeira mensagem neste blog. Você ainda me acompanha?


[1] “Música instrumental”. Wikipédia. http://pt.wikipedia.org/wiki/M%C3%BAsica_instrumental. Acesso em 01/07/20.
[2] Cf. “História do jazz”. E-jazz. http://www.ejazz.com.br/ojazz/historico.asp. Acesso em 01/07/2011.
[3] Ibidem.
[4] Também conhecido como New Thing (coisa nova), o Free Jazz é um estilo criado nos EUA por músicos afro-americanos como John Coltrane e Rashied Ali, originário do bebop, mas que propunha uma liberdade de improvisação musical total do músico e uma diferenciação de atitude musical da música produzida pelos anglo-americanos. Tinha influência da música contemporânea produzida pelo compositor erudito norte-americano John Cage, defensor do conceito musical de atonalismo ou música aleatória. Vários músicos internacionais seguiram esta tendência durante as décadas de 1960 e 1970, principalmente aqueles que ideologicamente se identificavam com a questão dos direitos civis (civil rights) nos EUA àquela época. Nessa lista estão músicos como o argentino Gato Barbieri, os ingleses John McLaughlin e Tony Oxley, os alemãos Peter Brötzmann e Theo Jörgensmann, o grupo austríaco Das erste Wiener Gemüseorchester (Primeira Orquestra de Legumes de Viena) e o brasileiro Hermeto Pascoal entre os mais representativos no mundo. (Cf. Free jazz. Wikipédia. http://pt.wikipedia.org/wiki/Free_jazz. Acesso em 01/07/2011.)

quarta-feira, 8 de junho de 2011

A MAGIA DO ENCONTRO III: CHICO BUARQUE

Pra quem foi criado ao som da MPB como eu, poucas pessoas chegaram tão perto da unanimidade como o compositor e cantor Chico Buarque. Numa época em que, no Brasil, a música foi uma das formas mais criativas (e também mais eficazes) de luta contra a ditadura militar, a quase unanimidade em torno da figura do Chico tinha também um sabor de resistência à opressão.

Mas Chico Buarque não foi apenas o cantor da indignação de uma parcela significativa dos brasileiros contra o autoritarismo dos militares. Ele era também um intérprete sensível dos sentimentos humanos mais nobres, sem nunca descambar para a pieguice, para a breguice ou, como dizíamos na época, para a cafonice. Ele encantava a todos nós, homens e mulheres, embora fosse evidente o derretimento maior e mais desavergonhadamente assumido da mulherada. Por causa disso havia uma espécie de consenso conformista entre nós, os homens, de que “todo homem brasileiro é um corno do Chico Buarque”, tal era o derretimento de nossas namoradas, noivas, esposas, amantes etc. pelos olhos cor de ardósia, pela voz sensual (ainda que com pouca extensão e até meio desafinada), pelas melodias encantadoras e letras ao mesmo tempo sensíveis e inteligentes desse terrível sedutor da MPB.

Mas aí o tempo passou, a MPB foi perdendo espaço para outros ritmos e interesses, como o axé, o pagode, o sertanejo, o funk e tantas outras novidades mais ou menos musicais que foram aos poucos ganhando espaço na mídia a partir, principalmente, do final da década de 1990, depois da saudável explosão do rock nacional, nos anos 80, celebrando o fim da ditadura e tentando apontar algum rumo para o Brasil da “nova” república. No meio disso tudo, junto com outros grandes da MPB, como Caetano Veloso, Gilberto Gil, Djavan, Alceu Valença, a voz de Chico Buarque foi ficando perdida no tempo, saindo de moda e da mídia para apenas ocupar o lugar que lhe cabe na história, certo?

Errado! Chico Buarque, com seus sessenta e poucos anos, continua cantando e encantando, inclusive muita gente que, quando ele fazia sucesso na mídia, ouvia a Xuxa, a Turma do Balão Mágico, o Trem da Alegria ou ainda nem era plano nas cabeças e corações de futuros pais e mães. Veja, por exemplo, o que diz a cantora Fernanda Porto, uma das mais conhecidas da nova geração de cantores e cantoras do que às vezes vem sendo chamado de “Nova MPB”, na edição da Revista MTV de janeiro de 2005: “Não tenho essa coisa de ficar dizendo: ‘Ai, olha só que conquista’... Mas é claro que depois que eu fui ouvir falei: ‘Caramba, é mesmo, Chico Buarque fravou em drum’n’bass’. Até pensei: ‘Vou ligar pros meus amigos!’ (risos)”. Pra quem não sabe, drum’n’bass é uma tendência da música popular contemporânea, bastante dançante e por isso muito bem aceita no ambiente das discotecas, que costuma misturar voz, violão ou guitarra, baixo e samplers eletrônicos para criar ou reciclar canções. No Brasil, Fernanda Porto é talvez a mais famosa representante dessa tendência, misturando o bit acelerado da discoteca com MPB. O resultado é, no mínimo interessante. Mas o mais interessante é ouvi-la cantando Roda viva, do Chico, com a levada drum’n’bass, acompanhada do próprio, num encontro de gerações e tendências cujo resultado é um diálogo bastante interessante. A música está no CD Giramundo, de Fernanda, gravado em 2004.

Mas Fernanda Porto não foi a única a ter a companhia de Chico Buarque. Nos últimos anos, a presença de Chico Buarque em discos de cantores da nova geração da música brasileira tem sido uma constante. Ele está, por exemplo, no DVD Pra Se Ter Alegria, da cantora Roberta Sá, de 2009, que foi gravado ao vivo. Das quatro faixas bônus gravadas em estúdio, a canção Mambembe, do começo da carreira de Chico, que ele e Roberta Sá cantam acompanhados pelo violão de Marcello Gonçalves, do excelente Trio Madeira Brasil, está imperdível. A própria Roberta conta estava dentro de um restaurante quando viu Chico passando na rua e saiu em desabalada carreira correndo atrás dele para convidá-lo para a gravação. Coisa de tiete, que deu um excelente resultado.

Outro artista que não perdeu a oportunidade de reverenciar Chico Buarque foi seu xará Chico César, que o convidou para gravar com ele, em 2002, a provocativa canção Antinome, no CD Respeitem Meus Cabelos, Brancos. Vale a pena conferir letra, música e interpretação desse encontro, verdadeiro convite à reflexão: “Chamo-te pelo antinome, pai/ Quando o invisívelSome e se esvai/ Em vinho que não bebo/ Em pão que não comerei jamais”. Imagino que o César tenha se inspirado no Buarque na hora de compor e por isso decidiu convidá-lo para esse encontro musical.

Outro convite que produziu um resultado ao mesmo tempo curioso e saboroso foi o da cantora Marina de La Riva. Chico participou de seu CD de estreia, de 2007, dividindo com ela a canção Ojos malignos, um antigo bolero do cubano Juan Pichardo que no álbum foi transformado em samba. Marina é filha de pais cubanos. Seu pai era o herdeiro de um canavial em Cuba quando aconteceu a revolução liderada por Fidel Castro e Che Guevara, em 1959. Com medo do futuro, sua família resolveu se mudar para os EUA, onde continuou envolvida com a plantação de cana-de-açúcar. Depois de algum tempo e alguns insucessos econômicos, decidiram se mudar mais uma vez e vieram parar na região canavieira de Campos dos Goytacazes, onde Marina nasceu, cresceu e aprendeu a cantar música brasileira, deixando escondida em algum canto da memória e do coração a forte tradição cultural e musical cubana. Só depois de adulta é que ela teve coragem (ou discernimento) para resgatar seu lado cubano. Mas, como a música brasileira já estava mais do que enraizada, no disco ela acabou realizando uma ousada e interessante mistura, colocando ritmo de samba onde antes havia um bolero, introduzindo canto e ritmo cubano onde antes havia música brasileira. E lá no meio dessa mistura, parece que com muito gosto, estava Chico Buarque, convidado de honra.

Chico ainda aparece numa emocionante homenagem do sambista Diogo Nogueira, filho do não menos importante João Nogueira, em seu DVD de 2010 Sou Eu Ao Vivo. No show Chico divide com Nogueira a canção Homenagem ao malandro. Logo em seguida, Chico e Diogo Nogueira, acompanhados também de Ivan Lins e do magnífico bandolinista Hamilton de Holanda (que não é parente do Chico mas que todo mundo precisa conhecer), cantam a canção Sou eu, composição de Chico e Ivan feita para Diogo. A platéia, composta de gente, na média, bem mais jovem do que Chico e Ivan e que tem como hábito o consumo de sambas mais populares, assim mesmo vai ao delírio. Há algo de mágico em Chico Buarque, não?

Chico também está no CD de estreia da cantora paulista Rita Gullo. Detalhe interessante é que Rita Gullo é filha do grande escritor Ignacio de Loyola Brandão, autor de muito sucesso nos anos duros da ditadura militar, quando teve um de seus livros, Zero, proibido pela censura em 1975 e só liberado em 1979. Foi Brandão quem fez a aproximação entre a filha e Chico Buarque. Formada em História e em Artes Cênicas, parece que o repertório de seu primeiro álbum tem um toque dessas duas escolhas profissionais. Nele Chico divide com ela a canção A mulher de cada porto, dele e de Edu Lobo, que Chico já havia dividido com Gal Costa em 1980. O peso dessa responsabilidade parece não ter incomodado Rita, que tem uma belíssima voz e que escolheu um repertório de primeira qualidade, que vale a pena conferir.

É preciso falar também da participação de Chico Buarque no segundo CD da cantora curitibana Thaís Gulin, ôÔÔôôÔôÔ (o título é este mesmo, rs), publicado este ano, com a canção Se eu soubesse, do próprio Chico. Thaís vem sendo apontada como a nova namorada de Chico Buarque, o que tem provocado a inveja e a raiva de algumas fãs – e não só, necessariamente, as menos jovens, as que já passaram, digamos, da casa dos cinqüenta... Ela evita falar no assunto e sobre Chico ela apenas diz, em entrevista para a revista Quem, que “[...] tinha gravado duas músicas dele no meu primeiro álbum e ele me mandou um e-mail elogiando. Continuamos a nos falar e, um dia, ele me enviou a música”, sem dar pistas sobre o possível romance.

E já que o assunto são os, digamos, laços de família, Chico participou também, no ano passado, do CD Diminuto do genro Carlinhos Brown, não como cantor, mas declamando um poema do próprio Brown no meio da canção Mãos denhas. É provável que o parentesco entre os dois tenha facilitado a participação de Chico no disco de Brown – além do mais, lendo um poema do genro. Mas é inegável que, sogro ou não, Brown só o convidou porque tal participação agrega prestígio ao álbum – aliás, extremamente delicado e muito diferente do que Carlinhos Brown tem produzido ao longo de sua carreira já relativamente longa. Afinal, mais do que sogro, o convidado é Chico Buarque, que, além de cantor e compositor, é também escritor, e dos bons.

Finalmente, lembro o excelente CD de estreia da cantora mineira Paula Santoro, de 2005, em que ela canta com Chico a difícil Sem fantasia, feita para a peça teatral Roda Viva e gravada originalmente em 1968, em dueto com a irmã Cristina, depois regravada com Maria Bethânia, ao vivo, em 1975. Sua interpretação não fica devendo nada a Cristina, então uma quase adolescente, nem a Bethânia, já consagrada nos anos 70.

O que marca mesmo é a reverência ao grande Chico Buarque, que vem funcionando como uma espécie de pé de coelho de artistas mais jovens, ao mesmo tempo que atesta o vigor e a beleza de sua música, que atravessa décadas agradando gregos e troianos – e, claro, as gregas e troianas – tanto ou mais do que seus famosos olhos azuis. Na verdade, acho que Francisco Buarque de Hollanda deveria ser tombado pelo IPHAN e pela UNESCO como Patrimônio Cultural da Humanidade. E pergunto: onde é que você pode se encontrar e se encantar com as canções de Chico Buarque, na sua própria voz, na voz de outros artistas, em interpretações solo ou em dueto com outros cantores? Claro, só na Escala Virtual.

sábado, 21 de maio de 2011

A MAGIA DO ENCONTRO II: OS ANOS 70

Continuando nossa conversa, acredito que foi na década de 1970 que um cantor convidar outro para dividir com ele a gravação de uma música ou LP se tornou um hábito na música brasileira. Esse hábito, para sorte de quem gosta de música, ultrapassou os limites dessa década tão difícil e tão importante na história do Brasil, chegando até os nossos dias.

Alguns desses encontros foram memoráveis. Já citei aqui o registro do show Caetano e Chico Juntos e Ao Vivo, de 1972, realizado no Teatro Castro Alves, em Salvador. Esse show antológico, aliás, foi uma resposta dos dois cantores/compositores à suposta rivalidade entre eles – Chico representando uma vertente mais “tradicional” da MPB, enquanto Caetano representava uma linha mais “antenada” (perdoem o anacronismo). E, mais do que deles, da gravadora Philips/Polygram, que tinha interesse direto nisso. Algumas faixas, como os dois cantando Você não entende nada, do Caetano, e Cotidiano, do Chico, são pra nunca mais esquecer. Ou os dois cantando Bárbara, de Chico e Ruy Guerra, composta para a peça Calabar, proibida pela Censura – assim como trechos da letra da música, que a gravadora abafou mixando aplausos artificiais por cima da gravação original. Quem nunca ouviu não sabe o que está perdendo...

Lembrei também outro encontro memorável, entre Chico e Maria Bethânia, em 1975, no disco Ao Vivo, registrado na temporada de shows no Canecão, no Rio de Janeiro, naquele ano. No disco os dois dividem as canções Olê olá, Sinal fechado, Sem fantasia, Quem te viu, quem te vê, Vai levando e Noite dos mascarados, além de interpretarem individualmente várias outras canções antológicas, como a maravilhosa versão Sonho impossível, feita por Chico e Ruy Guerra, do sucesso de Elvis Preley The impossible dream (The quest), de J. Darion e M. Leigh.

Mas muitos outros álbuns gravados em dupla fazem parte dessa época mágica da história da MPB, em que parece que a terrível repressão política e policial imposta pelo regime militar era em parte amenizada pela imensa criatividade e grande produção dos artistas e, ao mesmo tempo, consumo significativo por parte dos fãs. É dessa época, por exemplo, o antológico disco Elis & Tom, em que os dois dividem os vocais em apenas duas canções, a fantástica Águas de março e Soneto da separação, embora Tom esteja presente em todas as demais canções com seu piano encantado. Além de Águas de março, uma verdadeira obra-prima, vale a pena destacar também a interpretação de Elis para Chovendo na roseira. Duvido que você, ao ouvir a canção, não consiga “ver”, cinematograficamente, a chuva “real” caindo sobre uma viçosa roseira. Se bobear, sente até o cheiro das rosas vindo na voz de Elis.

Outro grande disco de encontro da década de 1970 é Doces Bárbaros, reunindo Caetano Veloso, Gilberto Gil, Maria Bethânia e Gal Costa, gravado em 1976, como resultado de uma série de shows realizados pelos quatro baianos em comemoração aos dez anos de carreira. Nele foram registrados clássicos como Esotérico, Pé quente, cabeça fria e Um índio. A turnê dos Doces Bárbaros também foi registrada em vídeo – inclusive a prisão de Gilberto Gil e do baterista Chiquinho Azevedo, em Florianópolis, por posse de maconha, o que fez com que a turnê, que havia começado no Anhembi, em São Paulo, fosse suspensa. Na verdade, pouco depois, o show foi retomado e bateu o recorde de bilheteria do Canecão (RJ), onde permaneceu por dois meses. Em seguida, foi lançado o álbum.

Mais um grande disco da época é o antológico Clube da Esquina, reunindo Milton Nascimento, Lô Borges e dezenas de amigos, os “sócios” do “clube”. Gravado em 1971, quando Lô tinha apenas 19 anos de idade e Milton, 31, o disco tinha ainda a participação de Beto Guedes em algumas canções, além de um time de músicos de primeira qualidade. Canções até hoje presentes na memória coletiva e regravadas tanto por grandes estrelas quanto por gente da nova geração da MPB estavam lá, como a belíssima Cais, recentemente regravada por Kátia B, no CD Espacial, de 2007. Ou como Tudo que você podia ser, de Lô Borges e seu irmão Márcio Borges, gravada por Milton; ou, ainda, Um girassol da cor do seu cabelo, também já registrada por Skank, Ira!, Nenhum de Nós e Vanessa da Matta, entre tantos outros, só pra ficar nas gravações mais recentes; Clube da Esquina nº 2 e Nada será como antes, verdadeiros hinos à esperança. Não tenho medo de exagerar e de dizer que se Milton ou Lô, por alguma razão, tivessem sido obrigados a encerrar a carreira depois desse álbum, que registrou 21 canções, só com ele já teriam gravado seus nomes na história da música popular brasileira.

Outros grandes encontros aconteceram nos anos 70 do século XX. Registro aqui, ainda, o Ao Vivo dos irmãos Caetano Veloso e Maria Bethânia, de 1978, registro da temporada carioca de shows da dupla, no Canecão. Esse espetáculo, que começou informal e despretensioso em Salvador, acabou tomando corpo e foi levado a várias capitais brasileiras. No disco Caetano e Bethânia interpretam canções que marcaram ou remetiam à infância de ambos (Número um e Adeus, meu Santo Amaro), sucessos da época (Falando sério, sucesso de Roberto Carlos, João e Maria e Maninha, ambas de Chico Buarque) e ainda momentos onde cada um cantava sucessos do outro (Carcará, com Caetano, e O leãozinho, com Bethânia). Também lançaram a canção Tudo de novo, que resumia o espírito daquela reunião.

Outro antológico é o álbum Gil Jorge Oxum Xangô, de 1975, reunindo Gilberto Gil e Jorge Ben (que na época ainda não era Jor...). Não é exagero dizer que esse disco é “revolucionário”. Munidos, cada um, de um violão na mão e muitas idéias na cabeça, Gil e Jorge Ben, numa época em que a guitarra imperava, decidiram fazer tudo em casa, no improviso, movidos apenas pela imaginação e sabe-se lá o que mais na cabeça, se é que me entendem. Gil naquela época era um cosmopolita que misturava Jimmi Hendrix e a Banda de Pífanos de Caruaru. Ben, com o seu A Tábua de Esmeralda, havia entrado na fase que ele autodenominou de “alquimia musical”. Muito dessas experiências estão nessa jam session que mistura samba, jongo, afoxé, misticismo, Gonzagão e João da Baiana. Ben dá a largada com a melodia e a música, Gil o segue fazendo o contracanto e as demais vocalizações, floreando o ritmo de Jorge, numa sintonia e um entrosamento análogos ao jazz — esse é o espírito da coisa, a mecânica celeste, o puro improviso, pura invenção, música total. Gil Jorge Ogum Xangô é um testamento e uma experiência e um encontro histórico sem precedentes de dois músicos fantásticos, de uma forma que não se repetiria nunca mais.

Finalmente, nesta relação improvisada de grandes encontros musicais dos anos 70 do século passado, novamente Gilberto Gil, desta vez acompanhado da dama do Rock Brasil, Rita Lee. Falo do álbum Refestança, de 1977. Ao que tudo indica, o objetivo do show que originou o álbum era recolocar no mercado as carreiras musicais dos dois artistas, que no ano anterior haviam sido presos por posse de drogas. O show contava com uma apresentação dos dois cantando É proibido fumar, sucesso de Roberto e Erasmo Carlos, que ganhava outras conotações devido ao conturbado ano anterior. O álbum tem como curiosidades o fato de ser o único registro ao vivo da banda de Rita Lee na época, a Tutti-Frutti, além de marcar a entrada de seu marido, Roberto de Carvalho, na banda. No álbum estão registradas canções já consagradas de cada um dos dois artistas, além de uma versão bem humorada de Get back, dos Beatles, renomeada como De leve. É disco que não pode faltar em nenhuma antologia da música brasileira, já que junta dois grandes artistas, duas bandas (a Tutti-Frutti, de Rita Lee, e a Refavela, de Gil), dois estilos, dois talentos num grande show de criatividade.

Essa conversa não tem fim, mas por enquanto fico por aqui. Outras postagens virão e nelas ainda vou falar de muitos outros encontros. E você, fique de ouvidos atentos porque a Escala Virtual toca tudo isso. Aliás, onde mais você poderia encontrar tanta música boa reunida?

sexta-feira, 6 de maio de 2011

A MAGIA DO ENCONTRO I: OS PIONEIROS

É da tradição da música brasileira o encontro entre cantores. Já na década de 1930 alguns encontros entre cantores fizeram grande sucesso. Naquela época as gravações eram feitas em discos de goma-laca, substância produzida por um inseto conhecido como kerria lacca, encontrado nas florestas da Índia e da Tailândia. Pelo tipo de textura desse material e pelas dimensões dos discos, só cabia uma música em cada lado (cerca de 3 minutos) e por isso, caso o encontro de dois cantores agradasse o público – bem restrito, nessa época, diga-se de passagem –, a experiência era repetida em novas gravações. Lembro aqui as duplas Francisco Alves e Mário Reis e Jonjoca e Castro Barbosa. Essa dupla de cantores registrou, em junho de 1931, um disco com os sambas Sinto falta de você e A cana está dura, ambos compostos pelo próprio Jonjoca. Na verdade, parece que o disco foi uma resposta da gravadora, a Victor, à Odeon, gravadora que desde setembro do ano anterior fazia enorme sucesso com gravações da dupla formada por Francisco Alves e Mário Reis. Até novembro de 1933 foram lançados 11 discos (22 músicas) de Jonjoca e Catro Barbosa.
A dupla “concorrente”, Mário Reis e Francisco Alves, era mais interessante por duas características. A primeira era a diferença de timbre e de colocação da voz dos dois cantores. Enquanto Francisco Alves era conhecido por seu vozeirão, que mais lembrava um cantor de ópera, Mário Reis tinha uma voz suave e de pouco fôlego, tendo sido considerado por muitos estudiosos como precursor e inspirador do jeito de cantar de João Gilberto e, portanto, como uma espécie de “avô” da bossa nova. A segunda é que os dois cantores já eram bastante famosos – considerando-se os padrões da época – quando gravaram juntos uma série de discos entre 1930 e 1932.
Francisco Alves é considerado até hoje pelos especialistas em música brasileira como um dos maiores fenômenos da história da música popular brasileira, tendo sido uma peça-chave no mercado fonográfico nacional. Ele soube aproveitar como nenhum outro artista uma época em que as técnicas de gravação começavam a se aprimorar no Brasil, levando à popularização do disco, do rádio e do samba como estilo musical. Pra se ter uma ideia da importância de sua carreira musical, estima-se que entre a década de 1930 e 1953, quando morreu em um acidade de carro, chegou a vender 5 milhões de discos. Por causa de sua voz possante, ele ficou conhecido como o “Rei da Voz”. Seu prestígio era tão grande que ele gravava ao mesmo tempo para a gravadora Odeon e para a Parlophon, usando o pseudônimo Chico Viola. Para quem não está ligando o nome à pessoa, foi Francisco Alves quem gravou, em 1939, a famosa Aquarela do Brasil, de Ary Barroso, considerada como uma espécie de hino nacional não oficial do Brasil, conhecida no mundo todo.
Mário Reis, por sua vez, ficou conhecido por criar um estilo de cantar diferente do que havia no Brasil até então. Ao contrário dos vozeirões do rádio, cantava num tom quase coloquial, com outro timbre e uma divisão rítmica mais ágil, dando uma interpretação diferente às canções. Seus primeiros sucessos foram as músicas Jura e Gosto que me enrosco, de Sinhô. Foi também o primeiro a gravar uma música de Ary Barroso, em 1929. No ano seguinte começou a gravar uma série de discos em dupla com Francisco Alves, fórmula que mostrou-se extremamente bem-sucedida que foi imitada não só por Jonjoca e Castro Barbosa, mas também por vários outros cantores. Na década de 30 tornou-se um dos maiores intérpretes de Noel Rosa, que também foi seu parceiro. Entre essas gravações está a de Filosofia, de Noel e André Filho (o autor de Cidade maravilhosa), regravada na década de 1970 por Chico Buarque.
Os casos das duplas Jonjoca e Castro Barbosa e Francisco Alves e Mário Reis não podem ser vistos como encontros esporádicos, em que um dos cantores convidou o outro para participar de seu disco, mas uma série de gravações provavelmente estrategicamente planejadas pelas direções das gravadoras – mesmo levando-se em conta que a indústria musical estava só começando no Brasil. Por outro lado eles não chegaram a se configurar como duplas de cantores, como seriam, por exemplo, Antônio Carlos & Jocafi, Toquinho & Vinícius ou Tom & Dito, na década de 1970, Kleiton & Kledir, nos anos 90 ou, mais recentemente, os cantores “sertenejos” como Chitãozinho & Xororó, Bruno & Morrene ou Vítor & Léo, que sempre (ou na imensa maioria das vezes) gravam e se apresentam juntos. Além disso, eles não foram os únicos cantores dos primórdios da indústria fonográfica a gravarem juntos. Podemos lembrar, por exemplo, ainda na década de 1930, Dorival Caymmi e Carmen Miranda cantando O que é que a baiana tem, de 1939; Francisco Alves e Ismael Silva cantando Se você jurar, deles dois e Nilton Bastos, em 1931; Carmen Miranda e Luiz Barbosa cantando No Tabuleiro da Baiana, de Ary Barroso, em 1936; a divertidíssima Boneca de pixe, de Ary Barroso e Luiz Iglesias, cantada por  Almirante e Carmen Miranda, em 1938. Isso só pra lembrar algumas das canções mais famosas daquela época já tão distante de nós, mas tão presente em dezenas de regravações de outros artistas.
Como podemos ver, compartilhar o microfone (e também os palcos) é uma tradição bastante antiga da MPB, que continuou pelos anos afora, dando a quem gosta de música o prazer de encontros memoráveis – alguns em apenas uma canção, outros registrados em um show e/ou disco inteiro, como, por exemplo, a dupla Miltinho e Dóris Monteiro, em dois discos memoráveis de 1970 e 1971, Dóris, Miltinho e Charme volumes 1 e 2; ou Elis Regina e Jair Rodrigues, entre 1965 e 1967, com a série de discos Dois na bossa; ou o fantástico show de Chico Buarque e Caetano Veloso, de 1972, no Teatro Castro Alves, em Salvador, Bahia, registrado no disco Caetano e Chico Juntos e Ao Vivo; ou Chico e Maria Bethânia, em 1975, no disco Ao Vivo, registrado na temporada de shows no Canecão, no Rio de Janeiro, em 1975. Por razões técnicas, a maioria dos grandes do passado – os aqui mencionados e os que ainda não apareceram no meu texto – não têm como freqüentar as “ondas” da Escala Virtual. Mas fique de olho (ou melhor, de ouvido) aberto, porque muitos deles têm visitado a programação da rádio. Volto a falar disso daqui a pouco.

terça-feira, 19 de abril de 2011

VAMOS OUVIR OS SONS DA ÁFRICA?

A cada dia que passa aumenta o número de brasileiros e brasileiras que reconhecem se orgulham da importância fundamental das diversas culturas africanas na nossa formação cultural. Obviamente, não poderia ser diferente, já que as pesquisas históricas mostram que pode ter sido de cerca de 4 milhões o número de africanos que entraram no Brasil, vindos das mais diferentes regiões da África, pelas mãos do tráfico de escravos, desde 1500 até a sua proibição definitiva, em 1850.
No entanto, apesar de identificarmos a imensa quantidade de traços culturais africanos na nossa cultura, na fala, na música e nas danças, na culinária, no vestir, na própria maneira de ser, a verdade é que sabemos muito pouco da África, seja da África antiga, seja da África atual, o que acaba nos fazendo generalizar (em geral, negativamente), de forma absolutamente irreal e fantasiosa, o que seja esse continente que, afinal, nós mesmos reconhecemos como parte fundamental das nossas origens. Em geral, só conseguimos pensar sobre a África quando o assunto é a escravidão – e aí transformamos todos os africanos em um povo só, homogêneo (o que é um grande erro), que veio para o Brasil como escravo – ou quando o assunto é a África atual – quando, então, pensamos na África como “um povo” pobre e sofrido, que padece de fome, miséria e lutas intertribais sem fim.
Como este texto não é uma aula de História, nem de Geografia, nem de Sociologia e nem Antropologia, não vou usar este espaço para desconstruir esses preconceitos nem para detalhar informações sobre a África (embora recomende fortemente que quem me lê busque esse tipo de informação sempre que necessário para não cair no risco de reproduzir por aí essas desinformações). Mas me parece importante dizer algumas coisas. A primeira delas é que a África é o segundo continente em população da Terra (ficando atrás apenas da Ásia), com cerca de 900 milhões de pessoas. A segunda é que existem na África 53 países independentes e, infelizmente, ainda diversas colônias pertencentes a países de outros continentes, tais como as Ilhas Canárias e os enclaves de Ceuta e Melilla, que pertencem à Espanha, o território ultramarino das ilhas de Santa Helena, Ascensão e Tristão da Cunha, que pertence ao Reino Unido, e as ilhas de Reunião e Mayotte, que pertencem à França.
Nesse imenso mosaico de etnias, idiomas, regimes políticos, níveis de desenvolvimento e de culturas que aprendemos a chamar de África, meio sem saber direito o que é, um dos elementos mais marcantes é, sem dúvida, sua diversidade musical – que é o que mais interessa nesta coluna. Diversidade que, assim como os demais aspectos já apontados, é praticamente uma ilustre desconhecida para a maioria de nós brasileiros. Eu mesmo, que fui criança na década de 1960 e adolescente nos anos 70, só me lembro de dois artistas africanos na minha formação musical: a sul-africana Miriam Makeba, em 1967, cantando Pata pata – que a molecada da minha época conhecia como “Tá com pulga na cueca” – e o camaronês Manu Dibango cantando e tocando sax em Soul Makossa – que a minha turma de adolescentes chamava de “Pau na coxa” –, isso lá no já distante 1972.
Não me lembro ao certo quando foi que ouvi novamente falar em música africana. Imagino que a primeira vez, depois dos dois casos absolutamente episódicos da Miriam Makeba e do Manu Dibango, foi quando a extinta TV Manchete levou ao ar, em 1989, a série de cinco programas denominada African Pop, produzida por Hermano Vianna. Participaram da série, entre outros, Manu Dibango, Mory Kanté, Baaba Maal, Franco, Papa Wemba, Tabu Ley, Mahmoud Ahmed, Cheb Khaled, Johnny Clegg, Olodum, Ebenezer Obey e vários outros grandes da música pop africana, agora já veteranos, que, infelizmente, continuam absolutamente desconhecidos para a maioria das pessoas do lado de cá do Atlântico, o que é uma grande pena. Como na época eu não tinha um gravador de videocassete (outra coisa antigona...), a série African Pop acabou ficando apenas na memória e acabou quase desaparecendo.
Algum tempo mais tarde, já na década de 90, alguém na faculdade me falou de um tal de Fela Kuti (que só muito tempo depois descobri ser um artista e ativista político nigeriano, morto em 1997). Mas acho que meu interesse pela música da África cresceu mesmo foi quando, pelas mãos de uma ex-namorada (sempre elas...), tomei contato com o senegalês Youssou N’Dour, que gravou, com a sueca Neneh Cherry, em 1994, a maravilhosa 7 seconds. Mais ou menos na mesma época, Wolfgang König, um DJ amigo meu alemão (ainda vou falar muito dele aqui) me mandou de Berlim uma fita cassete (coisa antiga, né?) com o LP (outra coisa antiga...) Amen (1991), do malinês Salif Keita (o mesmo que ficaria consagrado na canção À primeira vista, do Chico César, de 1995).

De lá pra cá, me viciei e não consigo largar o vício. Vício que me fez sofrer muito, com várias crises de abstinência. No começo só mesmo meu amigo Wolfgang era capaz de me tirar da crise, mandando lá da Alemanha remessas do produto. Felizmente, a globalização e o avanço tecnológico acabaram propiciando outro fornecedor – a internet – e agora minhas crises são coisa do passado. Pelas teias da grande rede nunca fico sem música africana e graças a isso hoje em dia, embora não me considere curado dessa doença, pelo menos posso mantê-la sob controle. Foi assim que conheci nomes como Mayra Andrade e Tcheka (de Cabo Verde), Lira (África do Sul), Keziah Jones (Nigéria), Lokua Kanza (Rep. Dem. do Congo), Régis Gizavo (Madagascar), só pra ficar nos que fazem o que poderíamos chamar de “pop africano” e na chamada África Subsaariana. Mas há muito mais gente boa que precisa ser conhecida, como o genial trumpetista e cantor Hugh Masekela, da África do Sul, da mais pura tradição do jazz; o argelino Khaled, que faz uma mistura muito interessante da música tradicional islâmica com o pop mais internacional; ou ainda os cantores e cantoras que por alguma razão familiar, econômica ou política, não nasceram na África, mas são genuinamente africanos, como a portuguesa Sara Tavares, a francesa Soha e os alemães Patrice e Ayo. Outra coisa: há muito tempo artistas brasileiros e africanos têm se comunicado, infelizmente, com muito mais resultados positivos para a África do que para o Brasil. Se voltar um pouco mais no tempo, você vai encontrar, por exemplo, o saudoso acordeonista Sivuca com Miriam Makeba, e também uma banda formada por brasileiros como o incrível percussionista Airto Moreira, sua mulher, a cantora Flora Purim, o guitarrista José Neto e vários instrumentistas sul-africanos. Mais recentemente, vai encontrar Djavan cantando com Lokua Kanza; Marisa Monte com a caboverdeana Cesária Évora; Mayra Andrade com Mariana Aydar; Lenine com Régis Gizavo, só pra lembrar alguns. A propósito, no CD Nós Somos Nós, de 2009, produzido por Zeca Baleiro, o cantor e compositor angolano Filipe Mukenga tem como convidados o próprio Zeca Baleiro, Martinho da Vila e Ivan Lins. Vale a pena conferir. A Escala Virtual toca todos eles. Fique atento.

domingo, 3 de abril de 2011

VENTO LESTE NA ESCALA VIRTUAL

Não dá pra ser ingênuo. Na sociedade capitalista e industrializada a obra de arte (como tudo, aliás) é produto industrial e, portanto, o objetivo do seu “fabricante” (o artista) e seus “parceiros” (a indústria cultural) é o “mercado”. Não há nada mais de graça num mundo em que tudo é mercadoria ou, no mínimo, mercantilizável. É por isso que existe uma grande dificuldade entre os artistas, produtores artísticos, teóricos da arte, meios de comunicação etc. em atribuir maior ou menor valor artístico a uma obra de arte. No campo da música, que é o que nos interessa aqui, todos os dias aparece alguém tentando classificar e hierarquizar as obras de arte. Por isso estão sempre aparecendo expressões como “MPB de qualidade”, “samba de raiz” ou “verdadeira música sertaneja” separar música “boa” de música “ruim”. Aliás, já falei sobre isso na mensagem anterior.

É claro que a questão não é nada simples. Eu também tenho meus “critérios”, nem um pouco científicos – se é que eles existem –, que são os seguintes: em que Fulano pensou ao compor a canção X? O que ele queria provocar em mim, ouvinte, seu destinatário final? Como entre mim e ele existe um atravessador, o “mercado”, nem sempre ele, autor, é capaz de me “enxergar” e, eventualmente, pode se confundir, achando que eu sou o “mercado”. Em outras palavras, o autor pode achar que está compondo para o “mercado” ouvir e não pra mim, uma pessoa, um cidadão, outro ser humano. Afinal, é do “mercado” que vem sua remuneração (ou pelo menos é isso que pode parecer ao compositor mais distraído) e não de mim. Por outro lado, que critérios objetivos eu, um simples mortal, posso ter para testar se o autor ao escrever sua canção estava pensando em mim, um abstrato ser do outro lado das caixas de som ou dos fones de ouvido, ou no “mercado”, que ele reconhece através dos contratos que assina ou do que vê no seu extrato bancário? Como disse, a questão não é nada simples.

Como meus critérios não são nada científicos, a única forma de eu saber o que é a “verdadeira” música, a “de qualidade”, enfim, a que, ao adquiri-la no “mercado”, provoca em mim algo mais do que a sensação de ser apenas mais um produto para a minha “despensa cultural”, mais um “sabonete musical”, é o método da tantativa-e-erro. Guiado por um “instinto” não muito criterioso, tento identificar através dos meus ouvidos, da minha sensibilidade e da minha inteligência, aliada indispensável, mas cada vez valendo menos no “mercado”, qual foi a intenção do autor. Gosto de pensar que a obra de arte é tanto melhor quanto a maior intenção do autor de conversar comigo, me contar histórias, cutucar as minhas memórias, dialogar com a minha sensibilidade, estimular o meu bom gosto, enfim, compartilhar comigo sua visão de mundo. Quando mais sintonia houver nesse “diálogo” maior será o retorno, inclusive em dinheiro, para o autor. O “mercado” entraria aí apenas como mediador e não como gigolô, atravessador, agiota de idéias e sensações. Sonho? É claro que sim! Mas, como diziam o Lô Borges, o Márcio Borges e o Milton Nascimento já no distante 1972, “porque se chamavam homens também se chamavam sonhos – e sonhos não envelhecem”. Ainda gosto de pensar que são os sonhos que movem o mundo.

Mas qual a razão de essa longa e caótica reflexão sobre a qualidade da música nesses nossos tempos difíceis e complicados? Por causa de uma obra de arte chamada Vento Leste, um álbum duplo maravilhoso do cantor, compositor e instrumentista angrense PC Castilho, do qual tenho a honra de ser amigo. Não ouviu ainda? Nunca ouviu falar? Conselho de amigo: corre atrás! Em Vento Leste todos aqueles meus critérios meio atabalhoados, mas sinceros, estão presentes.

No vídeo, as canções Ciranda do mundo, do Edu Krieger, e Pra você, mãe, do próprio PC, apresentada no programa Sr. Brasil, do Rolando Boldrin, na TV Cultura, de São Paulo, no dia 14/04/2009. Com o PC estão o Naif Simões na percussão, o Marcílio Figueiro no violão, o Carlinhos Rabha no baixo e o Marcelo Caldi o acordeom.


Quando ponho pra tocar o CD As Canções sinto como se estivesse conversando com PC sobre as raízes africanas (dele, minhas, nossas). Ou como se estivesse vendo e ouvindo o som dos saveiros que cruzam o mar de Angra, de onde ele veio e onde vivo e trabalho. Ou como se compartilhássemos uma cerveja na já extinta Adega de Angra (ou Bar do Léo) ao som do também extinto Hot Bit, programa noturno do Mauro Peres na Rádio Costazul, nos inesquecíveis anos 90 angrenses. As canções do PC falam comigo, me dizem coisas, chamam a minha atenção, me convidam a pensar, a viajar no Barco de música junto com a turma do Zangareio, a brincar com Yana ou a “conversar” com D. Maria José através do xote Pra você, mãe. Tudo isso através da voz, do canto, da melodia, da execução apurada, entrosada e dedicada de cada instrumento. Aí me vem a certeza de que o CD foi feito pra mim, mesmo que eu nem tenha passado pela cabeça do PC ao compor nenhuma as canções que compôs ou ao escolher as de outros compositores. Isso porque na cabeça dele seguramente havia, na outra ponta da obra, gente real, concreta, de carne e osso e não um abstrato “mercado”. Tudo o que eu disse aqui vale também para o outro CD, Instrumental, que faz par com As Canções, que me faz voltar as minhas ancestrais raízes afro-mineiras com Olhar futuro, Saídas e bandeiras ou Cafezais sem fim.

E nem cheguei a falar do pessoal que o acompanha, da melhor estirpe: o grande amigo e grande baixista (não necessariamente nessa ordem) Carlinhos Rahba, também angrense; a minha querida Nilze Carvalho dividindo com ele Pelourinho, o grande Marcílio Figueiró, Mart’nália, Edu Krieger, Itamar Assière, Naif Simões, Fabiano Salek... tanta gente!

Você pode se perguntar se não estou me rasgando em tanto elogio porque o autor do álbum é meu amigo. Evidentemente, ser amigo já é, sim, um bom critério nesses tempos tão impessoais, apáticos e insensíveis. Ajuda na hora de me fazer prestar mais atenção, tomar mais cuidado com o que estou escutando, ter um pouco mais de delicadeza e respeito para com o autor e com a obra. Mas se a música que ele faz não me dissesse nada eu poderia simplesmente me omitir, não fazer nenhum comentário, deixar pra lá. O PC Castilho nem iria saber que eu tinha ouvido os CDs e não gostado. Nem você, que me dá a honra e a alegria de ler as coisas que eu escrevo.

É preciso confessar que há muita música que me provoca sensações semelhantes às que tentei descrever aqui e para a qual nem sempre escrevo algum comentário. Às vezes por falta de tempo, às vezes por distração etc. acabo deixando passar em branco. Podia ter comentado o CD da Nilze Carvalho, Estava faltando você, de 2007, ou o recente O que é meu; ou os excelentes Na Lapa e Caçuá, do violinista franco-“carioca” Nicolas Krassik, o da cantora cubana-brasileira Marina de la Riva, o maravilhoso trabalho da linda Roberta Sá (todo mundo, aliás, tocando na Escala Virtual...). Nem sempre faço tudo que quero. Mas nunca é tarde pra falar de coisas boas. E é por isso que eu recomendo fortemente que você fique atento à programação da Escala Virtual, que toca direto o Vento Leste e outros trabalhos do PC Castilho, inclusive como membro da excelente banda Zangareio, angrense de corpo e alma, que em 2011 completa longos e vitoriosos 20 anos de existência, que merecem ser comemoradíssimos. (Qualquer dia escrevo um texto dedicado só ao Zanga...). Obrigado, PC!

quarta-feira, 23 de março de 2011

MÚSICA DE QUALIDADE

Tarefa difícil essa de preencher um espaço com ideias. Mesmo que essas ideias sejam sobre algo pelo qual você é apaixonado, como é o meu caso com relação à música, e mesmo quando esse espaço é parte de um projeto que tem como objetivo cultivar e compartilhar com outras pessoas música de qualidade. Aliás, isso por si só já é um problema porque é preciso acreditar que tanto do lado de cá, de quem escreve, quanto do lado de lá, de quem lê estas linhas enquanto ouve a Escala Virtual, existe um consenso sobre o que é essa tal de “música de qualidade”. Ao admitirmos esta expressão, é preciso que já nos tenhamos feito uma série de perguntas e, o que é mais difícil ainda, acreditar que tenhamos as respostas, mesmo que provisórias. Quer ver? Se a música que toca na Escala Virtual é a “de qualidade”, quais seriam os tipos de música “sem qualidade”? Com base em que estaríamos em condições de fazer essa divisão: no ritmo? na melodia? na interpretação? no sucesso do intérprete e/ou do compositor? Um artista que compõe ou que interpreta músicas “de qualidade” se transforma automaticamente em um artista de qualidade? E o que compõe ou interpreta músicas “sem qualidade”, será que está para sempre marcado como um artista “sem qualidade”?

Até a década de 1930, no Brasil, o samba era considerado música de “péssima qualidade” e era associado a gente ignorante, preguiçosa, vagabunda, a malandros e criminosos e era proibido em qualquer casa de família. Os compositores eram criticados por serem “do morro”, por serem semi-analfabetos, por só falarem de orgia e malandragem, porque suas letras tinham erros de português ou eram simples demais etc.

Algo parecido também aconteceu com o rock and roll no eixo EUA-Grã Bretanha: era uma música associada a delinquentes, rebeldes, arruaceiros, gente indecente e imoral. A harmonia do rock dos anos 50 e 60 era criticada por ser primitiva, simples demais, por só usar três acordes etc. A voz dos cantores de rock era criticada por não ter técnica, ser desafinada etc. Na década seguinte, os anos 70, o mesmo rock, evoluiu para uma estética mais sofisticada, às vezes incorporando elementos da música erudita, como no caso de bandas como Yes ou Emerson, Lake & Palmer – o chamado progressive rock – ou introduzindo elementos da música folclórica e tradicional como o Jethro Tull e Focus. E aí passou a ser considerada por alguns como deturpação da música clássica, massificação da música folclórica, música chata demais, música muito “cabeça” etc. e, por isso, “sem qualidade”. Estranho, não é?

Hoje, tanto o samba, no Brasil, como o rock’n’roll, nos EUA e Inglaterra, são vistos não apenas como música de qualidade, mas também como símbolos desses países, como patrimônio cultural e, no Brasil, compositores e cantores como Sinhô, Pixinguinha, Noel Rosa, Orlando Silva e Sylvio Caldas ou, mais recentemente, Paulinho da Viola, João Nogueira e Paulo César Pinheiro são vistos como verdadeiros heróis nacionais, assim como acontece, nos EUA, com personalidades como Little Richard, Lou Reed, Elvis Presley, Mick Jagger, Paul McCartney, Sting e tantos outros, das mais variadas gerações.
E agora, você acha que continua sabendo o que é “música de qualidade”? Seja qual for sua resposta, a proposta da Escala Virtual é tocar música de todos os lugares e de todos os tempos que sejam reconhecidas e cultivadas pelo fato de que, enquanto os anos vão passando, elas permanecem nas nossas memórias, nos ajudando a reviver sensações, impressões, reafirmar alguns pontos de vista, refletir sobre outros sobre os quais já não temos assim tanta certeza, mas que, de qualquer forma, não mereceram a nossa indiferença, o nosso desprezo ou o nosso esquecimento.

Essa música não tem rótulo. Pode ser a longa e inesquecível Stairway to heaven, na voz inesquecível do então jovem Robert Plant (1971), vocalista do não menos inesquecível Led Zeppelin; o delicioso dueto de Chico Buarque e Elza Soares cantando Façamos (Vamos amar), versão de Carlos Rennó (2002) para Let’s do it (Let’s fall in Love) do genial compositor norte-americano Cole Porter; o francês Henri Salvador (falecido em 2008, aos 91 anos) cantando o bolero Dans mon île em 1958, considerada como uma das canções precursoras da bossa nova e, aliás, gravada também por Caetano Veloso em 1981, no LP Outras Palavras; ou a maravilhosa voz da jovem cantora caboverdiana Mayra Andrade (25 anos) cantando Palavra (do CD Stória Stória, de 2009); ou, ainda, o cantor, compositor, flautista, saxofonista, violonista e gente boa angrense PC Castilho cantando Barco de música do fantástico álbum Vento Leste, de 2008.

É sobre essa música que não tem rótulo, à qual é pouco chamar de “música de qualidade” porque esse conceito explica muito pouco, mas que quando toca nos toca e permanece tocando pelos anos afora, sem ser engolida pela máquina de fazer dinheiro que transforma tudo em produto de fábrica que pretendo falar aqui nesta coluna. Quem me acompanha?