sábado, 21 de maio de 2011

A MAGIA DO ENCONTRO II: OS ANOS 70

Continuando nossa conversa, acredito que foi na década de 1970 que um cantor convidar outro para dividir com ele a gravação de uma música ou LP se tornou um hábito na música brasileira. Esse hábito, para sorte de quem gosta de música, ultrapassou os limites dessa década tão difícil e tão importante na história do Brasil, chegando até os nossos dias.

Alguns desses encontros foram memoráveis. Já citei aqui o registro do show Caetano e Chico Juntos e Ao Vivo, de 1972, realizado no Teatro Castro Alves, em Salvador. Esse show antológico, aliás, foi uma resposta dos dois cantores/compositores à suposta rivalidade entre eles – Chico representando uma vertente mais “tradicional” da MPB, enquanto Caetano representava uma linha mais “antenada” (perdoem o anacronismo). E, mais do que deles, da gravadora Philips/Polygram, que tinha interesse direto nisso. Algumas faixas, como os dois cantando Você não entende nada, do Caetano, e Cotidiano, do Chico, são pra nunca mais esquecer. Ou os dois cantando Bárbara, de Chico e Ruy Guerra, composta para a peça Calabar, proibida pela Censura – assim como trechos da letra da música, que a gravadora abafou mixando aplausos artificiais por cima da gravação original. Quem nunca ouviu não sabe o que está perdendo...

Lembrei também outro encontro memorável, entre Chico e Maria Bethânia, em 1975, no disco Ao Vivo, registrado na temporada de shows no Canecão, no Rio de Janeiro, naquele ano. No disco os dois dividem as canções Olê olá, Sinal fechado, Sem fantasia, Quem te viu, quem te vê, Vai levando e Noite dos mascarados, além de interpretarem individualmente várias outras canções antológicas, como a maravilhosa versão Sonho impossível, feita por Chico e Ruy Guerra, do sucesso de Elvis Preley The impossible dream (The quest), de J. Darion e M. Leigh.

Mas muitos outros álbuns gravados em dupla fazem parte dessa época mágica da história da MPB, em que parece que a terrível repressão política e policial imposta pelo regime militar era em parte amenizada pela imensa criatividade e grande produção dos artistas e, ao mesmo tempo, consumo significativo por parte dos fãs. É dessa época, por exemplo, o antológico disco Elis & Tom, em que os dois dividem os vocais em apenas duas canções, a fantástica Águas de março e Soneto da separação, embora Tom esteja presente em todas as demais canções com seu piano encantado. Além de Águas de março, uma verdadeira obra-prima, vale a pena destacar também a interpretação de Elis para Chovendo na roseira. Duvido que você, ao ouvir a canção, não consiga “ver”, cinematograficamente, a chuva “real” caindo sobre uma viçosa roseira. Se bobear, sente até o cheiro das rosas vindo na voz de Elis.

Outro grande disco de encontro da década de 1970 é Doces Bárbaros, reunindo Caetano Veloso, Gilberto Gil, Maria Bethânia e Gal Costa, gravado em 1976, como resultado de uma série de shows realizados pelos quatro baianos em comemoração aos dez anos de carreira. Nele foram registrados clássicos como Esotérico, Pé quente, cabeça fria e Um índio. A turnê dos Doces Bárbaros também foi registrada em vídeo – inclusive a prisão de Gilberto Gil e do baterista Chiquinho Azevedo, em Florianópolis, por posse de maconha, o que fez com que a turnê, que havia começado no Anhembi, em São Paulo, fosse suspensa. Na verdade, pouco depois, o show foi retomado e bateu o recorde de bilheteria do Canecão (RJ), onde permaneceu por dois meses. Em seguida, foi lançado o álbum.

Mais um grande disco da época é o antológico Clube da Esquina, reunindo Milton Nascimento, Lô Borges e dezenas de amigos, os “sócios” do “clube”. Gravado em 1971, quando Lô tinha apenas 19 anos de idade e Milton, 31, o disco tinha ainda a participação de Beto Guedes em algumas canções, além de um time de músicos de primeira qualidade. Canções até hoje presentes na memória coletiva e regravadas tanto por grandes estrelas quanto por gente da nova geração da MPB estavam lá, como a belíssima Cais, recentemente regravada por Kátia B, no CD Espacial, de 2007. Ou como Tudo que você podia ser, de Lô Borges e seu irmão Márcio Borges, gravada por Milton; ou, ainda, Um girassol da cor do seu cabelo, também já registrada por Skank, Ira!, Nenhum de Nós e Vanessa da Matta, entre tantos outros, só pra ficar nas gravações mais recentes; Clube da Esquina nº 2 e Nada será como antes, verdadeiros hinos à esperança. Não tenho medo de exagerar e de dizer que se Milton ou Lô, por alguma razão, tivessem sido obrigados a encerrar a carreira depois desse álbum, que registrou 21 canções, só com ele já teriam gravado seus nomes na história da música popular brasileira.

Outros grandes encontros aconteceram nos anos 70 do século XX. Registro aqui, ainda, o Ao Vivo dos irmãos Caetano Veloso e Maria Bethânia, de 1978, registro da temporada carioca de shows da dupla, no Canecão. Esse espetáculo, que começou informal e despretensioso em Salvador, acabou tomando corpo e foi levado a várias capitais brasileiras. No disco Caetano e Bethânia interpretam canções que marcaram ou remetiam à infância de ambos (Número um e Adeus, meu Santo Amaro), sucessos da época (Falando sério, sucesso de Roberto Carlos, João e Maria e Maninha, ambas de Chico Buarque) e ainda momentos onde cada um cantava sucessos do outro (Carcará, com Caetano, e O leãozinho, com Bethânia). Também lançaram a canção Tudo de novo, que resumia o espírito daquela reunião.

Outro antológico é o álbum Gil Jorge Oxum Xangô, de 1975, reunindo Gilberto Gil e Jorge Ben (que na época ainda não era Jor...). Não é exagero dizer que esse disco é “revolucionário”. Munidos, cada um, de um violão na mão e muitas idéias na cabeça, Gil e Jorge Ben, numa época em que a guitarra imperava, decidiram fazer tudo em casa, no improviso, movidos apenas pela imaginação e sabe-se lá o que mais na cabeça, se é que me entendem. Gil naquela época era um cosmopolita que misturava Jimmi Hendrix e a Banda de Pífanos de Caruaru. Ben, com o seu A Tábua de Esmeralda, havia entrado na fase que ele autodenominou de “alquimia musical”. Muito dessas experiências estão nessa jam session que mistura samba, jongo, afoxé, misticismo, Gonzagão e João da Baiana. Ben dá a largada com a melodia e a música, Gil o segue fazendo o contracanto e as demais vocalizações, floreando o ritmo de Jorge, numa sintonia e um entrosamento análogos ao jazz — esse é o espírito da coisa, a mecânica celeste, o puro improviso, pura invenção, música total. Gil Jorge Ogum Xangô é um testamento e uma experiência e um encontro histórico sem precedentes de dois músicos fantásticos, de uma forma que não se repetiria nunca mais.

Finalmente, nesta relação improvisada de grandes encontros musicais dos anos 70 do século passado, novamente Gilberto Gil, desta vez acompanhado da dama do Rock Brasil, Rita Lee. Falo do álbum Refestança, de 1977. Ao que tudo indica, o objetivo do show que originou o álbum era recolocar no mercado as carreiras musicais dos dois artistas, que no ano anterior haviam sido presos por posse de drogas. O show contava com uma apresentação dos dois cantando É proibido fumar, sucesso de Roberto e Erasmo Carlos, que ganhava outras conotações devido ao conturbado ano anterior. O álbum tem como curiosidades o fato de ser o único registro ao vivo da banda de Rita Lee na época, a Tutti-Frutti, além de marcar a entrada de seu marido, Roberto de Carvalho, na banda. No álbum estão registradas canções já consagradas de cada um dos dois artistas, além de uma versão bem humorada de Get back, dos Beatles, renomeada como De leve. É disco que não pode faltar em nenhuma antologia da música brasileira, já que junta dois grandes artistas, duas bandas (a Tutti-Frutti, de Rita Lee, e a Refavela, de Gil), dois estilos, dois talentos num grande show de criatividade.

Essa conversa não tem fim, mas por enquanto fico por aqui. Outras postagens virão e nelas ainda vou falar de muitos outros encontros. E você, fique de ouvidos atentos porque a Escala Virtual toca tudo isso. Aliás, onde mais você poderia encontrar tanta música boa reunida?

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