quarta-feira, 23 de março de 2011

MÚSICA DE QUALIDADE

Tarefa difícil essa de preencher um espaço com ideias. Mesmo que essas ideias sejam sobre algo pelo qual você é apaixonado, como é o meu caso com relação à música, e mesmo quando esse espaço é parte de um projeto que tem como objetivo cultivar e compartilhar com outras pessoas música de qualidade. Aliás, isso por si só já é um problema porque é preciso acreditar que tanto do lado de cá, de quem escreve, quanto do lado de lá, de quem lê estas linhas enquanto ouve a Escala Virtual, existe um consenso sobre o que é essa tal de “música de qualidade”. Ao admitirmos esta expressão, é preciso que já nos tenhamos feito uma série de perguntas e, o que é mais difícil ainda, acreditar que tenhamos as respostas, mesmo que provisórias. Quer ver? Se a música que toca na Escala Virtual é a “de qualidade”, quais seriam os tipos de música “sem qualidade”? Com base em que estaríamos em condições de fazer essa divisão: no ritmo? na melodia? na interpretação? no sucesso do intérprete e/ou do compositor? Um artista que compõe ou que interpreta músicas “de qualidade” se transforma automaticamente em um artista de qualidade? E o que compõe ou interpreta músicas “sem qualidade”, será que está para sempre marcado como um artista “sem qualidade”?

Até a década de 1930, no Brasil, o samba era considerado música de “péssima qualidade” e era associado a gente ignorante, preguiçosa, vagabunda, a malandros e criminosos e era proibido em qualquer casa de família. Os compositores eram criticados por serem “do morro”, por serem semi-analfabetos, por só falarem de orgia e malandragem, porque suas letras tinham erros de português ou eram simples demais etc.

Algo parecido também aconteceu com o rock and roll no eixo EUA-Grã Bretanha: era uma música associada a delinquentes, rebeldes, arruaceiros, gente indecente e imoral. A harmonia do rock dos anos 50 e 60 era criticada por ser primitiva, simples demais, por só usar três acordes etc. A voz dos cantores de rock era criticada por não ter técnica, ser desafinada etc. Na década seguinte, os anos 70, o mesmo rock, evoluiu para uma estética mais sofisticada, às vezes incorporando elementos da música erudita, como no caso de bandas como Yes ou Emerson, Lake & Palmer – o chamado progressive rock – ou introduzindo elementos da música folclórica e tradicional como o Jethro Tull e Focus. E aí passou a ser considerada por alguns como deturpação da música clássica, massificação da música folclórica, música chata demais, música muito “cabeça” etc. e, por isso, “sem qualidade”. Estranho, não é?

Hoje, tanto o samba, no Brasil, como o rock’n’roll, nos EUA e Inglaterra, são vistos não apenas como música de qualidade, mas também como símbolos desses países, como patrimônio cultural e, no Brasil, compositores e cantores como Sinhô, Pixinguinha, Noel Rosa, Orlando Silva e Sylvio Caldas ou, mais recentemente, Paulinho da Viola, João Nogueira e Paulo César Pinheiro são vistos como verdadeiros heróis nacionais, assim como acontece, nos EUA, com personalidades como Little Richard, Lou Reed, Elvis Presley, Mick Jagger, Paul McCartney, Sting e tantos outros, das mais variadas gerações.
E agora, você acha que continua sabendo o que é “música de qualidade”? Seja qual for sua resposta, a proposta da Escala Virtual é tocar música de todos os lugares e de todos os tempos que sejam reconhecidas e cultivadas pelo fato de que, enquanto os anos vão passando, elas permanecem nas nossas memórias, nos ajudando a reviver sensações, impressões, reafirmar alguns pontos de vista, refletir sobre outros sobre os quais já não temos assim tanta certeza, mas que, de qualquer forma, não mereceram a nossa indiferença, o nosso desprezo ou o nosso esquecimento.

Essa música não tem rótulo. Pode ser a longa e inesquecível Stairway to heaven, na voz inesquecível do então jovem Robert Plant (1971), vocalista do não menos inesquecível Led Zeppelin; o delicioso dueto de Chico Buarque e Elza Soares cantando Façamos (Vamos amar), versão de Carlos Rennó (2002) para Let’s do it (Let’s fall in Love) do genial compositor norte-americano Cole Porter; o francês Henri Salvador (falecido em 2008, aos 91 anos) cantando o bolero Dans mon île em 1958, considerada como uma das canções precursoras da bossa nova e, aliás, gravada também por Caetano Veloso em 1981, no LP Outras Palavras; ou a maravilhosa voz da jovem cantora caboverdiana Mayra Andrade (25 anos) cantando Palavra (do CD Stória Stória, de 2009); ou, ainda, o cantor, compositor, flautista, saxofonista, violonista e gente boa angrense PC Castilho cantando Barco de música do fantástico álbum Vento Leste, de 2008.

É sobre essa música que não tem rótulo, à qual é pouco chamar de “música de qualidade” porque esse conceito explica muito pouco, mas que quando toca nos toca e permanece tocando pelos anos afora, sem ser engolida pela máquina de fazer dinheiro que transforma tudo em produto de fábrica que pretendo falar aqui nesta coluna. Quem me acompanha?